Naima
"Calçar os sapatos geralmente me trazem idéias estranhas,me lembram que estou indo a algum lugar,e olho para a rua,tudo quieto,e Coltrane murmura seu lamento suave e agradável,lavo o rosto,escovo os dentes, e saio para a rua.Calor insuportável,caminho pensando que seria bom se acontecesse algo bom agora,alguma coisa que me surpreendesse,alguma novidade desses rostos e corpos.
Ando por entre flanelinhas e empresários, o brilho do sol nos carros,sorrisos e indiferença.Um bêbado me pede um trocado,dou a ele 50 centavos e ele me lembra um outro que eu vi uma vez dormindo do lado de um posto enquanto uns caras mijavam na cara dele.Chego no prédio do Paulo um amigo meu das antigas,e subo o elevador junto com uma garota loira,ela estava suada e molhada,vinha da academia e falava no celular.Era bem gostosa,mas tinha um ar,como se soubesse de muita coisa,jogava a cabeça pra trás e mexia no cabelo sem parar,olhava com desdém e eu não consegui segurar o riso,parecia que estava atuando,num papel,não vi nela nenhum traço de tranquilidade,de charme natural,só uma tentativa insana e obsessiva de chamar a atenção.
Daí ela falou:
-O que tu ta rindo?
-Ah,nada não,me lembrei de uma coisa só.
-É?
-É.
-Hm
O elevador parou no quarto andar e ela desceu,segui até o sexto e desci.Bati na porta e logo o Paulo abriu.Fui entrando enquanto ele falava sem parar das coisas que tinha pra fazer,ele trabalha com publicidade,mas agora estava desempregado,se virando com uns frilas,tinha que sair até pra levar um material mas disse que não ia demorar.Bateu a porta e fiquei sozinho,acendi um cigarro e fui fumar na sacada.O prédio onde ele mora é bem antigo,desses prédios antigos clássicos com apartamentos espaçosos,quartos grandes,e tem uma sacada de frente pra rua e fiquei olhando o movimento lá embaixo enquanto fumava meu cigarro.
Paulo tem um passarinho,um canário acho,amarelo e nunca entendi muito porque ele continua com esse bicho,ele nem da bola,só da comida pra ele não morrer de fome e água.O passarinho era de uma antiga namorada dele e quando ela se mandou ele ficou.Fiquei olhando pra ele,e ele cantava um pouco,esporadicamente.Comecei a ouvir gritos e parecia vir do vizinho,uma voz de mulher aos berros,e depois uma voz de um cara também aos gritos mas um pouco mais baixa que a voz da mulher.Era uma briga bem horrível,sons de coisas quebrando e os gritos não paravam e o passarinho começou a cantar compulsivamente e os barulhos dos ônibus lá embaixo,e o sol alto ainda esvaziando meus pensamentos.
Olhei para o pássaro e pensei na vida dele, e na minha,e a coisa me pareceu bem sórdida, e levantei a portinha da gaiola.Na hora nem pensei no que Paulo ia pensar,certamente não ia gostar,embora certamente não se importasse com ele também.O passarinho me olhou depois olhou para frente,ficou um tempo parado,deu um pulinho até ficar na frente da porta,cantou um pouco e depois ficou simplesmente parado enquanto eu o observava.Então pulou de volta pro fundo da gaiola e ali ficou.Fechei a portinha da gaiola e fui até a geladeira.Não tinha nada para beber só água,bebi um copo e fiquei pela sala.Peguei uma revista pra ler e daí Paulo chegou reclamando do calor e do trabalho.
Me lembrei de quando fazia publicidade e cada vez mais gosto menos da coisa,mas também não gosto muito mais das outras coisas e então saímos para beber,tava entardecendo e começava a rolar um vento na rua,tava bom até,e uma cerveja bem gelada cairia muito bem.
Fomos num boteco que costumo ir seguido,encontrei amigos,amigas e fiquei até tarde,simplesmente bebendo e conversando e fumando cigarros e olhando para as garotas e as milhares de coisas que passam na cabeça da gente nessas horas e tava bom e depois fui pra casa.Cheguei liguei o som e fui escovar os dentes,Coltrane de novo...é muito bom ouvir Naima antes de dormir.
0 Comments:
Post a Comment
<< Home